Identificar o outro como louco abre um campo de abuso de poder,
intolerância e violência. Desde o trabalho de referência do filósofo francês
Michel Foucault (1926-1984), História da loucura na Idade Clássica, de1960
(Perspectiva, 1978), podemos entender que o uso do termo “loucura” desqualifica
alguém, sendo usado para marcar uma diferença radical com relação ao que define
a identidade de uma pessoa ou mesmo uma cultura. Louco é o “não-eu”. Chamamos
de insensato aquele (ou aquilo) que não entendemos, que é tão diferente de nós
que não conseguimos reconhecer ou mesmo atribuir sentido.
Desta perspectiva, é comum que quando surge a denominação de louco
sejam acionados mecanismos de exclusão simplesmente porque uma pessoa (ou um
grupo) pensa de forma radicalmente diferente da nossa ou não compartilha nossos
valores morais ou religiosos. Identificar o outro como louco é abrir um campo
de abuso de poder, intolerância e violência.
SEM MODELO PARA SEGUIR
Em nossa forma de lidar com a doença mental, vivemos alguns impasses e
sobreposições terríveis. A primeira delas está relacionada à exclusão social e
ao estigma. O termo “loucura” não é técnico, não pertence ao estudo da
psiquiatria ou psicologia para descrição de uma patologia. Falar sobre loucura
não é a mesma coisa que falar sobre formas de estruturação psíquica. Da
perspectiva da psicanálise, por exemplo, não há desqualificação da pessoa
estruturada como neurótica ou psicótica. Isso se dá por um ótimo motivo: pela
óptica da psicanálise não há alguém sem um modo específico de se estruturar ou
livre de sofrimento, que seja uma espécie de “modelo”, uma referência normativa
em relação a quem os demais devam ser medidos. Assim, falar sofrimento mental,
neurose, psicose, borderline etc. não implica dizer “loucura”.
A insanidade tangencia as organizações mentais no conceito de “doença
mental”. Nele, aparecem o medo e a desqualificação associados ao sofrimento
psíquico da pessoa. A loucura associa-se ao medo da falta de controle, ao caos,
à imprevisibilidade, já que em muitos casos esse sofrimento mental leva as
pessoas a perder contato com as demais, viver numa realidade própria sem
discriminação ou consciência de que essa situação esteja ocorrendo. Formas de
sofrimento assim são associadas às psicoses.
Porém, aquele que sofre dessa forma é afetado também pelo estigma
social da loucura, que remete ao século 17 – aprendemos com Foucault – e diz
respeito à consideração de que o homem tem sua existência fundamentada na
razão. É ela que o define e o garante. Assim, tudo aquilo que possa remeter a
perda da razão (doença mental ou efeito de drogas que alterem a consciência,
por exemplo) acaba por implicar a perda da própria humanidade. Se um homem
perde a razão, ele já não é um homem, mas um animal irracional. E aqui não há
meio-termo: a pessoa é louca ou sã; tem mente ou é demente. Porém, essa
concepção extremista que opõe a ordem ao caos é visivelmente exagerada – nem as
pessoas “estatisticamente normais” têm absoluto controle racional sobre suas
ações, nem aquele que sofre de doença mental perdeu por completo sua
consciência, na maioria dos casos. Mas até a legislação vigente mantém este
pressuposto: somos todos considerados responsáveis por nossos atos e por eles
temos de responder, a não ser que haja diagnóstico psiquiátrico que ateste uma
doença mental. Nesse caso, a pessoa não é considerada im- putável por seus
atos.
Mas é preciso levar em conta que alguém reconhecido como insano perde
sua condição de cidadania, autonomia e inúmeras possibilidades de inclusão
social. A loucura – bem como outros tipos de sofrimento – de alguém com quem
não temos envolvimento afetivo não costuma gerar em nós empatia ou compaixão, o
que predomina são os sentimentos de medo e repúdio. Mas ao vermos alguém
próximo enlouquecer, passamos a temer por nossa própria sanidade. É como se a
empatia nos fizesse perceber a proximidade da possibilidade de perder a razão.
Em um caso ou em outro, é bastante provável que as pessoas próximas queiram
distância do louco. Ele provoca medo, aborrece, cansa, atrapalha.
Sabemos que, desde o século18, a perspectiva do Romantismo atribuiu ao
louco uma aura de sabedoria e liberdade ante as cobranças e renúncias que a
vida civilizada exige. Mas esta estetização da insanidade e a curiosidade (e
mesmo sedução) que ela gera aparece, sobretudo, como idealização à distância,
que não resiste ao convívio.
O segundo ponto a ser considerado está ligado à ambivalência no que
diz respeito à internação. Um médico passa a ter poderes policiais e judiciais,
pode solicitar a internação compulsória (contra a vontade) de alguém e, assim,
retirar da pessoa sua condição de cidadão. Passar por internações costuma
implicar a perda da condição de ser sujeito de sua vida. Surge aí uma questão
extremamente complexa: determinar em que ponto acaba a autonomia de uma pessoa
para discriminar sua própria condição de saúde e em que momento um outro
(parente ou médico, em geral) passa a ter o direito de solicitar a internação
contra a sua vontade.
Esse tipo de situação costuma ser terrível para todos os envolvidos. O
familiar que solicita a internação, ainda que cuidando da integridade do internado
e mesmo convicto de que seja o mais adequado a fazer, inevitavelmente se
sentirá culpado e temerá estar errado. O internado, por sua vez, tende a se
considerar sequestrado, traído, desqualificado. Em determinados casos de
sofrimento mental, a internação pode vir ao encontro de fantasias de
perseguição e exclusão. Além disso, se alguém sofre de modo a perder contato
com a realidade externa, não é difícil perceber que ser retirado de seu
ambiente potencializa muito a perda dessa conexão.
Não raro, o preço afetivo a ser pago pela internação é alto demais. Há
casos em que a ferida que se abre pode não ser mais fechada. Por isto, é tão
importante não banalizar essa medida e restringi-la a situações de risco
efetivo de violência da pessoa contra si mesma e contra os outros. Depois de
duas ou três internações cria-se o que podemos chamar de uma nova figura
patológica: o paciente psiquiátrico. Após anos de internações e uso de
medicação, torna-se difícil discriminar o quanto do comportamento estranho da
pessoa se deve ao sofrimento original ou aos efeitos dos tratamentos. Uma
pessoa vista como alguém com poucas chances de voltar à vida normal perde
amigos, amores, sonhos; assiste a seus pares segundo suas vidas e se vê ficando
para trás. Alguém que toma medicamentos pesados, e os tomará para sempre,
enfrenta todas as implicações e efeitos físicos decorrentes desse uso:
obesidade, risco de diabetes etc. E, é claro, será alguém com muito medo de ser
novamente internado. Muitas vezes, aqueles mesmos que se tornam responsáveis
pela pessoa a ameaçam de internação como forma de punição. O louco diz
loucuras, sua palavra passa a não valer perante aqueles que supostamente cuidam
dele. A ficção cinematográfica eternizou esse tipo de situação em filmes
impactantes como Um estranho no ninho (de Milos Forman, 1975), Garota
interrompida (de James Mangols, 1999) e, no Brasil, Bicho de sete cabeças (de
Lais Bodansky, 2001). Com a exclusão
social, a pessoa costuma ficar cada vez mais próxima à família (caso a tenha e
nela encontre acolhimento). Mas mesmo o cuidado de parentes pode acabar por
reverter na criação de um ambiente superprotetor, que mantém uma situação
infantilizada. Para a psicanálise, este fechamento no ambiente familiar acaba
por reproduzir – e tornar crônicos – elementos da própria constituição de
muitas formas de sofrimento que podem ter deflagrado a crise o que, por sua
vez, levou ao início do tratamento.
NEM TÃO FELIZES
A terceira questão a ser considerada é a “obrigação” contemporânea de
ser livre e feliz, que leva os que não se sentem assim a carregarem o peso de
estarem “errados”. Retomemos nossa primeira definição de loucura, aquela na
qual louco é alguém cujas ações nos pareçam sem sentido. Em nosso ambiente
contemporâneo, fortemente influenciado por um humanismo raso – presente na
autoajuda e na intensa disseminação da ideia de que somos livres para sermos o
que quisermos – uma figura da loucura é a tristeza, a melancolia. Se compramos
a ideia tola de que o gozo está disponível a todos a todo o momento, ele passa
a ser imperativo. E é isso que nos vendem a todo o momento as propagandas
veiculadas pelos meios de comunicação. A experiência de estar triste assemelha,
segundo essa lógica, a uma falha moral que deveria ser corrigida. É fácil
percebermos o quanto uma pessoa deprimida, para além daquilo que a deprime,
sente-seculpada por seu estado. Além de triste, ela se vê como fraca e
fracassada, incapaz de obter a felicidade como bem de consumo alegadamente
acessível a todos.
Outra figura contemporânea de loucura é a variedade de formas de
dependência com as quais nos defrontamos – de drogas legais ou ilegais, games,
redes sociais, comida, relacionamentos etc. Uma vez mais tendo como referência
humanista o valor da autonomia e liberdade, como entender e aceitar que alguém
opte por ser dependente? Essa pessoa sofre cumulativamente: por depender de
algo, pelo que a faz depender e pela recriminação moral que recebe. O
dependente é chamado de viciado e, como sabemos, vício é um conceito de
natureza moral, oposto à virtude. Há ainda uma sobreposição importante com a
qual convivemos hoje no campo da loucura é aquela entre o recurso da medicação
e os interesses comerciais da indústria farmacêutica.
As facetas, as implicações, as sobreposições e os impasses do sofrimento
mental são muitos. No livro Cadê minha sorte? (Loyola, 2009), de Mario Sergio
Limberte, um pai que perdeu um filho de 30 anos, diagnosticado com
esquizofrenia escreve: “Na nossa cultura dizer a uma pessoa que ela sofre de
esquizofrenia é o mesmo que dizer: ‘você está louco’”. Generoso, o livro reúne
grande quantidade de informações sobre a patologia, tratamentos e cuidados
possíveis. Uma aproximação corajosa e sem preconceito do espectro da loucura.
Fonte: Scientific American.
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