Todos os dias, milhões de conversas reverberam na cidade de Nova York.
Com a cabeça para fora de uma janela em uma rua movimentada é possível
ouví-las: todas aquelas frases sobrepostas, apenas meio-inteligíveis, formando
uma densa malha acústica por onde escapa uma exclamação, uma risada flutuante,
o choro estridente de uma criança de vez em quando. Cada vogal e consoante
pronunciada começa na forma de um impulso interno. Sinais elétricos estalam ao
longo de neurônios ramificados em regiões cerebrais especializadas em linguagem
e movimento; mais pulsos se espalham por nervos faciais, deslizam até a
garganta e o peito e passam velozmente pela espinha. O diafragma se contrai –
puxando ar para os pulmões – e relaxa, expulsando o ar por aquela gaiola de
cálcio e cartilagem – a laringe – dentro da qual asas de tecido se aproximam
uma da outra e murmuram. Conforme esse ar em vibração adentra a boca, a língua
guia seu fluxo e os lábios dão a cada respiração uma forma e som finais.
Sílabas liberadas viajam entre uma pessoa e outra em ondas de moléculas de ar
em colisão.
Todas essas conversas são acompanhadas em número e complexidade por
discursos muito mais elusivos. O cérebro humano adora solilóquios. Mesmo quando
falando com outros – e especialmente sozinhos – conversamos continuamente com
nós mesmos em nossas cabeças. Esse discurso não requer o fole do peito, o
rápido tremular de tecido em nossa garganta ou uma língua ágil; ele não precisa
perturbar uma única célula pilosa em nossos ouvidos, nem uma única partícula de
ar. Podemos falar sozinhos sem fazer um único som. Ponha a cabeça para fora da
mesma janela sobre a rua movimentada, e você não ouvirá nadado que pessoas
estão dizendo para si mesmas em particular. Todo esse diálogo interno permanece
submerso abaixo do oceano da fala humana, como um romance escrito em tinta
invisível abaixo do testo de outro livro.
Algumas pessoas tentaram ouvir as conversas silenciosas nas mentes de
outras. Psicólogos tentaram capturar o que chamam de autofala ou discurso
interior no momento, pedindo que pessoas parassem o que estavam fazendo e
escrevessem seus pensamentos em momentos aleatórios do tempo. Outros tentaram
usar pesquisas ou diários. Andrew Irving, antropólogo da University of
Manchester, decidiu tentar algo um pouco diferente: uma transcrição
peripatética da consciência.
Enquanto completava seu doutorado na década de 90, Irving ficou
interessado em como os pensamentos das pessoas, especialmente sua percepção do
tempo, mudava conforme eles se aproximavam da morte. Ele deu gravadores de voz
a voluntários com doenças sérias ou terminais e pediu que eles caminhassem em
suas vizinhanças, descrevendo seus pensamentos em voz alta. Na verdade, ele
transformou cada um de seus voluntários em um escrevente de sua própria mente
falante. “Percebi que era possível ver alguém sentando em uma cadeira ou
caminhando ao longo da rua e parecer que tudo está quieto – mas na verdade há
uma quantidade incrível de coisas acontecendo”, conta Irving. “Em suas cabeças,
elas podem estar indo da infância a religião a questionar Deus a imaginar o que
existe além da morte”.
Mais recentemente, Irving recebeu financiamento para encontrar esses
voluntários e descobrir o que aconteceu a eles. Como projeto paralelo, ele
decidiu registrar os diálogos internos de pessoas caminhando na cidade de Nova
York – para mapear parte da atividade mental da cidade, abaixo do panorâma
sonoro.
Ele abordou estranhos em pontos diferentes da cidade. “Com licença”,
dizia ele, “essa pode ser uma pergunta estranha, mas posso perguntar no que
você estava pensando antes de eu interrompê-lo?”. Se o estranho não saísse
correndo, ele lhe pedia para que usassem um headset com microfone conectado a
um gravador digital e falassem seus pensamentos em voz alta enquanto ele os
acompanhava de perto com uma câmera. Irving não podia ouvir o que estavam
dizendo, explicou ele, e os “voluntários” tinham total liberdade de caminhar
para onde quisessem e continuarem o que estavam fazendo.
“Eu fiquei surpreso com o número de pessoas que disse ‘sim’”, relata
ele – cerca de 100 ao todo. Ao sobrepor o áudio gravado com os vídeos, ele
criou retratos de consciências individuais em um dia específico na cidade de
Nova York – transcrições dos diálogos internos das pessoas que faz lembrar os
trabalhos de Virginia Woolf, James Joyce e outros escritores que estavam
especialmente interessados em recriar a mente no papel. Ele chama o projeto de
“New York Stories: The Lives of Other Citizens” [NT: Histórias de Nova York: As
Vidas de Outros Cidadãos”, literalmente]. Vídeos diferentes se concentram em
partes diferentes da cidade, como ruas, pontes, praças e cafés.
Os vídeos de Irving são ao mesmo tempo naturalistas e tão objetivos
quanto possível. No laboratório, diante de um pesquisador, pessoas
frequentemente ficam relutantes em revelar exatamente o que estão pensando.
Escrever um diário de discurso interior é um pouco mais particular, mas muitas
pessoas acham irritante deixar tudo de lado regularmente para escrever; às
vezes é difícil lembrar o que estávamos pensando há apenas alguns minutos. Nos
vídeos de Irving, pessoas estão vivendo suas vidas mais ou menos da maneira de
sempre, caminhando e falando consigo mesmas como se não estivessem
acompanhadas. É claro, pessoas que não ficam completamente confortáveis com o
cenário às vezes falam no microfone como se estivessem tentando entreter outra
pessoa. E colocar o discurso interno das pessoas em uma fita só captura formas
linguísticas de pensamento, negligenciando o tipo de pensamento que acontece em
imagens e cenas, por exemplo. Mesmo assim, os vídeos de Irving são registros
permanentes de pensamentos passageiros, de processos mentais dinâmicos se
desenrolando em tempo real. Eles quase nos dão acesso direto a um tipo de
comunicação interna que normalmente não compartilhamos uns com os outros.
Em um dos vídeos, uma jovem chamada Meredith caminha ao longo da
Prince Street no centro de Manhattan. Ela brevemente se pergunta se há uma
Staples [NT: Staples é uma loja de materiais para escritório. A rede é tão
grande e importante que ‘Staples’ substitui o termo ‘loja de materiais para
escritório’] por perto antes de recordar uma visita recente a sua amiga Joan
que, descobre ela, tem câncer. Meredith contempla a situação de sua amiga
durante os dois minutos seguintes, desmoronando com a ideia de ‘Nova York sem a
Joan’. Abruptamente, ela nota um café onde costumava se sentar e observar
pessoas, lamenta o quanto ele mudou e volta a procurar uma Staples. Menos de 30
segundos depois, ela está falando sobre Joan novamente – mas sérias reflexões
sobre a mortalidade são pontuadas por pensamentos mais provincianos sobre
navegar pela multidão. Quando se lembra da maneira abrupta e simples com que
Joan anunciou seu câncer, Meredith começa a engasgar – então se interrompe com
um leve estouro de frustração enquanto atravessa a rua: “Que loucura é essa?
Cinco carros no meio”. O segmento termina com Meredith se perguntando, mais uma
vez, se está perto de uma Staples.
Os pensamentos sinuosos de Meredith lembram a mente vagante de
Clarissa Dalloway no romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Enquanto caminha
pelas ruas de Londres, Clarissa entretém uma efêmera memória de lançar um xelim
no Serpentine, antes de mudar para uma meditação mais sombria sobre a morte:
“Fez diferença então, perguntou-se ela, caminhando na direção da Bond Street,
fez diferença que ela devesse inevitavelmente cessar completamente? tudo isso
deve continuar sem ela”. Momentos depois ela estava comentando para si mesma sobre
livros na vitrine de uma loja, em seguida ridicularizando sua “forma de pé de
ervilha”, em seguida admirando um peixeiro. Ela conversa consigo mesma sobre
guerra, imortalidade, romances passados e que tipo de flores deveria comprar
para sua festa.
Woolf provavelmente veneraria os vídeos de Irving. Ela queria escrever
sobre “uma mente comum em um dia comum”. Ao contrário de muitos de seus
contemporâneos, ela estava muito mais interessada no que estava acontecendo
dentro da cabeça das pessoas –pensamentos, memórias, consciências – que em
descrições detalhadas de prédios, semblantes e roupas. Ela queria que o leitor
percebesse quase tudo através da mente de seus personagens, em vez de ditar uma
trama tradicional com narrativa em terceira pessoa. Como uma mariposa
telepática, o narrador de Mrs. Dalloway vai da consciência de uma pessoa a
outra enquanto elas cuidam de seus vidas em Londres. Apesar de os personagens
não saberem disso, suas mentes vibras com os ecos de seus discursos anteriores:
mesmo distantes, eles pensam sobre o mesmo evento ao mesmo tempo – do soar do
Big Ben ou o escapando de um carro estourando como uma pistola; eles
constantemente pensam uns nos outros e se perdem em lembranças de experiências
compartilhadas.
“Sempre existe uma assembleia de vozes acontecendo simultaneamente em
público o tempo todo – mas você não consegue ouví-la”, lembra Irving. “Estou
interessado no que quer que as pessoas estejam pensando. ‘O que devo comprar
para o jantar de hoje? Devo comprar massa?’ Isso é tão interessante para mim
quanto algo mais dramático”.
Fonte: Scientific American.
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