quarta-feira, 8 de maio de 2013

Projeto documenta conversas de pessoas consigo mesmas


Todos os dias, milhões de conversas reverberam na cidade de Nova York. Com a cabeça para fora de uma janela em uma rua movimentada é possível ouví-las: todas aquelas frases sobrepostas, apenas meio-inteligíveis, formando uma densa malha acústica por onde escapa uma exclamação, uma risada flutuante, o choro estridente de uma criança de vez em quando. Cada vogal e consoante pronunciada começa na forma de um impulso interno. Sinais elétricos estalam ao longo de neurônios ramificados em regiões cerebrais especializadas em linguagem e movimento; mais pulsos se espalham por nervos faciais, deslizam até a garganta e o peito e passam velozmente pela espinha. O diafragma se contrai – puxando ar para os pulmões – e relaxa, expulsando o ar por aquela gaiola de cálcio e cartilagem – a laringe – dentro da qual asas de tecido se aproximam uma da outra e murmuram. Conforme esse ar em vibração adentra a boca, a língua guia seu fluxo e os lábios dão a cada respiração uma forma e som finais. Sílabas liberadas viajam entre uma pessoa e outra em ondas de moléculas de ar em colisão. 
Todas essas conversas são acompanhadas em número e complexidade por discursos muito mais elusivos. O cérebro humano adora solilóquios. Mesmo quando falando com outros – e especialmente sozinhos – conversamos continuamente com nós mesmos em nossas cabeças. Esse discurso não requer o fole do peito, o rápido tremular de tecido em nossa garganta ou uma língua ágil; ele não precisa perturbar uma única célula pilosa em nossos ouvidos, nem uma única partícula de ar. Podemos falar sozinhos sem fazer um único som. Ponha a cabeça para fora da mesma janela sobre a rua movimentada, e você não ouvirá nadado que pessoas estão dizendo para si mesmas em particular. Todo esse diálogo interno permanece submerso abaixo do oceano da fala humana, como um romance escrito em tinta invisível abaixo do testo de outro livro.
Algumas pessoas tentaram ouvir as conversas silenciosas nas mentes de outras. Psicólogos tentaram capturar o que chamam de autofala ou discurso interior no momento, pedindo que pessoas parassem o que estavam fazendo e escrevessem seus pensamentos em momentos aleatórios do tempo. Outros tentaram usar pesquisas ou diários. Andrew Irving, antropólogo da University of Manchester, decidiu tentar algo um pouco diferente: uma transcrição peripatética da consciência.
Enquanto completava seu doutorado na década de 90, Irving ficou interessado em como os pensamentos das pessoas, especialmente sua percepção do tempo, mudava conforme eles se aproximavam da morte. Ele deu gravadores de voz a voluntários com doenças sérias ou terminais e pediu que eles caminhassem em suas vizinhanças, descrevendo seus pensamentos em voz alta. Na verdade, ele transformou cada um de seus voluntários em um escrevente de sua própria mente falante. “Percebi que era possível ver alguém sentando em uma cadeira ou caminhando ao longo da rua e parecer que tudo está quieto – mas na verdade há uma quantidade incrível de coisas acontecendo”, conta Irving. “Em suas cabeças, elas podem estar indo da infância a religião a questionar Deus a imaginar o que existe além da morte”.
Mais recentemente, Irving recebeu financiamento para encontrar esses voluntários e descobrir o que aconteceu a eles. Como projeto paralelo, ele decidiu registrar os diálogos internos de pessoas caminhando na cidade de Nova York – para mapear parte da atividade mental da cidade, abaixo do panorâma sonoro.
Ele abordou estranhos em pontos diferentes da cidade. “Com licença”, dizia ele, “essa pode ser uma pergunta estranha, mas posso perguntar no que você estava pensando antes de eu interrompê-lo?”. Se o estranho não saísse correndo, ele lhe pedia para que usassem um headset com microfone conectado a um gravador digital e falassem seus pensamentos em voz alta enquanto ele os acompanhava de perto com uma câmera. Irving não podia ouvir o que estavam dizendo, explicou ele, e os “voluntários” tinham total liberdade de caminhar para onde quisessem e continuarem o que estavam fazendo.
“Eu fiquei surpreso com o número de pessoas que disse ‘sim’”, relata ele – cerca de 100 ao todo. Ao sobrepor o áudio gravado com os vídeos, ele criou retratos de consciências individuais em um dia específico na cidade de Nova York – transcrições dos diálogos internos das pessoas que faz lembrar os trabalhos de Virginia Woolf, James Joyce e outros escritores que estavam especialmente interessados em recriar a mente no papel. Ele chama o projeto de “New York Stories: The Lives of Other Citizens” [NT: Histórias de Nova York: As Vidas de Outros Cidadãos”, literalmente]. Vídeos diferentes se concentram em partes diferentes da cidade, como ruas, pontes, praças e cafés.
Os vídeos de Irving são ao mesmo tempo naturalistas e tão objetivos quanto possível. No laboratório, diante de um pesquisador, pessoas frequentemente ficam relutantes em revelar exatamente o que estão pensando. Escrever um diário de discurso interior é um pouco mais particular, mas muitas pessoas acham irritante deixar tudo de lado regularmente para escrever; às vezes é difícil lembrar o que estávamos pensando há apenas alguns minutos. Nos vídeos de Irving, pessoas estão vivendo suas vidas mais ou menos da maneira de sempre, caminhando e falando consigo mesmas como se não estivessem acompanhadas. É claro, pessoas que não ficam completamente confortáveis com o cenário às vezes falam no microfone como se estivessem tentando entreter outra pessoa. E colocar o discurso interno das pessoas em uma fita só captura formas linguísticas de pensamento, negligenciando o tipo de pensamento que acontece em imagens e cenas, por exemplo. Mesmo assim, os vídeos de Irving são registros permanentes de pensamentos passageiros, de processos mentais dinâmicos se desenrolando em tempo real. Eles quase nos dão acesso direto a um tipo de comunicação interna que normalmente não compartilhamos uns com os outros.
Em um dos vídeos, uma jovem chamada Meredith caminha ao longo da Prince Street no centro de Manhattan. Ela brevemente se pergunta se há uma Staples [NT: Staples é uma loja de materiais para escritório. A rede é tão grande e importante que ‘Staples’ substitui o termo ‘loja de materiais para escritório’] por perto antes de recordar uma visita recente a sua amiga Joan que, descobre ela, tem câncer. Meredith contempla a situação de sua amiga durante os dois minutos seguintes, desmoronando com a ideia de ‘Nova York sem a Joan’. Abruptamente, ela nota um café onde costumava se sentar e observar pessoas, lamenta o quanto ele mudou e volta a procurar uma Staples. Menos de 30 segundos depois, ela está falando sobre Joan novamente – mas sérias reflexões sobre a mortalidade são pontuadas por pensamentos mais provincianos sobre navegar pela multidão. Quando se lembra da maneira abrupta e simples com que Joan anunciou seu câncer, Meredith começa a engasgar – então se interrompe com um leve estouro de frustração enquanto atravessa a rua: “Que loucura é essa? Cinco carros no meio”. O segmento termina com Meredith se perguntando, mais uma vez, se está perto de uma Staples.
Os pensamentos sinuosos de Meredith lembram a mente vagante de Clarissa Dalloway no romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Enquanto caminha pelas ruas de Londres, Clarissa entretém uma efêmera memória de lançar um xelim no Serpentine, antes de mudar para uma meditação mais sombria sobre a morte: “Fez diferença então, perguntou-se ela, caminhando na direção da Bond Street, fez diferença que ela devesse inevitavelmente cessar completamente? tudo isso deve continuar sem ela”. Momentos depois ela estava comentando para si mesma sobre livros na vitrine de uma loja, em seguida ridicularizando sua “forma de pé de ervilha”, em seguida admirando um peixeiro. Ela conversa consigo mesma sobre guerra, imortalidade, romances passados e que tipo de flores deveria comprar para sua festa.
Woolf provavelmente veneraria os vídeos de Irving. Ela queria escrever sobre “uma mente comum em um dia comum”. Ao contrário de muitos de seus contemporâneos, ela estava muito mais interessada no que estava acontecendo dentro da cabeça das pessoas –pensamentos, memórias, consciências – que em descrições detalhadas de prédios, semblantes e roupas. Ela queria que o leitor percebesse quase tudo através da mente de seus personagens, em vez de ditar uma trama tradicional com narrativa em terceira pessoa. Como uma mariposa telepática, o narrador de Mrs. Dalloway vai da consciência de uma pessoa a outra enquanto elas cuidam de seus vidas em Londres. Apesar de os personagens não saberem disso, suas mentes vibras com os ecos de seus discursos anteriores: mesmo distantes, eles pensam sobre o mesmo evento ao mesmo tempo – do soar do Big Ben ou o escapando de um carro estourando como uma pistola; eles constantemente pensam uns nos outros e se perdem em lembranças de experiências compartilhadas.
“Sempre existe uma assembleia de vozes acontecendo simultaneamente em público o tempo todo – mas você não consegue ouví-la”, lembra Irving. “Estou interessado no que quer que as pessoas estejam pensando. ‘O que devo comprar para o jantar de hoje? Devo comprar massa?’ Isso é tão interessante para mim quanto algo mais dramático”.
Fonte: Scientific American.

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