Os gatos convivem conosco há 5 000 anos. Mesmo assim, sabemos pouco
sobre eles: o miado e o ronrom, por exemplo, continuam sendo grandes mistérios.
Um novo livro joga luz sobre os bichanos.
Ninguém sabe qual a função exata do ronrom. Ao contrário do que
imagina a maioria das pessoas, inclusive aquelas que têm experiência com gatos,
esse simpático ruído nem sempre é uma expressão de prazer. Gatos que se
encontram em situações de estresse ou que estão sofrendo uma dor forte também
ronronam. “Quando estão com dor, eles parecem usar esse ruído relaxante como
uma espécie de mantra”, diz o veterinário João Telhado Pereira, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, especialista em comportamento animal. De toda
forma, na situação em que você foi colocado no início da matéria – uma situação
hipotética, claro, mas nem por isso menos confortável –, dá para supor que seu
gato está tranqüilo e satisfeito, sem dor ou estresse. Agora, largue a revista
por um momento e tente determinar de onde vem o barulho.
Você vai ter alternadamente a impressão de que o ronrom vem do nariz,
ou da garganta, ou do peito do gato. Pois é outro mistério: ninguém sabe como
os gatos ronronam. Os cientistas só têm conjecturas: o ruído seria produzido
pela passagem de ar nos brônquios, ou por certos vasos do coração.
Gatos são mesmo fascinantes. Não é por nada que eles acumularam tantas
lendas e equívocos ao seu redor. É o caso, por exemplo, do dito popular segundo
o qual os gatos têm sete vidas. Felinos dos Estados Unidos e da Inglaterra são
ainda mais sortudos: em inglês, dizem que eles têm nove vidas. Parece ser uma
crença bem antiga – já aparece em um diálogo de Romeu e Julieta, peça de
Shakespeare escrita no final do século XVI. Menos auspiciosa é a idéia,
infelizmente ainda muito generalizada, de que o gato não é amigo do dono, mas
da casa. Deve ter sido invenção desse pessoal que gosta só de cachorro. A
oposição entre cães e gatos, no entanto, é criação humana. Eles não são
inimigos naturais e podem conviver muito bem sob o mesmo teto. (Aliás, o autor
desta matéria esclarece que gosta igualmente de ambas as espécies e jamais
escreveria sobre uma em detrimento da outra.)
Gatos e cachorros, é verdade, relacionam-se com o dono de modos
diferentes. Os cães são animais gregários. Seus equivalentes selvagens, os
lobos, vivem e caçam em grupo. Em situação doméstica, o cão tende a ver o dono
como uma espécie de chefe da matilha. Os gatos, ao contrário, são
individualistas. Os felinos, em sua maioria, caçam sozinhos – a exceção célebre
é o leão. Isso conduz a formas diferentes de socialização com os humanos. “Nós
somos visitantes no espaço deles. Eu moro na casa dos meus gatos”, afirma Luiz
Paulo Faccioli, juiz internacional de concursos de gato promovidos pela TICA
(sigla em inglês para Associação Internacional de Gatos).
Isso não significa que eles devam mandar na casa. É o que ensina o
treinador Bash Dibra, em CatSpeak (ainda inédito no Brasil). O título pode ser
traduzido livremente como “A língua dos gatos”, o que resume bem o espírito do
livro, espécie de manual de auto-ajuda para donos de gato. Dibra, que acumulou
vasta experiência com lulus e bichanos – sua clientela inclui os animais de
estimação de celebridades como Jennifer Lopez e Kim Basinger –, revela
inclusive algumas técnicas básicas para ensinar truques ao seu animal. “É mais
fácil ensinar um cachorro”, diz o autor. Mas isso não quer dizer, como muitos
pensam, que os gatos não sejam capazes nem mesmo de atender quando chamados
pelo nome. É preciso apenas conhecer a abordagem correta. “Com o cachorro, você
manda que ele faça alguma coisa. Com o gato, você pede”, afirma Dibra.
CatSpeak traz um capítulo dedicado à comunicação felina, com uma
espécie de dicionário de sons e posturas corporais. Alguns dos “verbetes” são
de conhecimento comum. Se um gato arreganha seus dentes, eriça o pêlo e emite
um ruído baixo e ameaçador, não é preciso ser especialista em felídeos para
saber que ele não está de bom humor. Mas e se o gato de repente salta para
perto da janela, mira fixamente um ponto na rua e começa a fazer um som trêmulo,
entrecortado, que lembra, de longe, uma metralhadora rouca – você saberia dizer
o que houve? Dibra mata a charada: esse é o ruído que o gato faz quando vê uma
caça potencial que está fora do seu alcance. Muito provavelmente, ele
vislumbrou um passarinho ou uma borboleta voando lá fora.
O mais curioso é que grande parte das emissões sonoras dos gatos são
dirigidas a nós, donos de um felino. É o que comprova um recente experimento de
psicologia evolutiva realizado por Nicholas Nicastro, pesquisador da
Universidade de Cornell, Estados Unidos. Nicastro compilou uma amostra de 100
vocalizações (miados) de 12 gatos. Depois, fez com que dois grupos de
voluntários (humanos, bem entendido) ouvissem as gravações. Pediu que o
primeiro grupo, com 26 pessoas, atribuísse notas de 1 a 7 conforme o nível de
prazer comunicado em cada uma das vocalizações. O segundo grupo, com 28
indivíduos, deu notas na mesma escala tomando como critério a urgência ou
aflição dos miados. Nicastro então analisou os miados acusticamente e afirma
ter chegado a resultados consistentes. Vocalizações mais longas, do tipo
miAAAUU, ganharam notas altas em aflição e baixas em prazer. É o que se ouve
quando o gato está com fome.
Com os miados mais curtos, foi o oposto: conceito alto em prazer e
baixo em urgência. Esses sons começariam em notas altas e depois baixariam.
Algo como MIIIau.
“Todo animal de estimação enfrenta o problema de obter o que deseja
dos seus donos humanos”, afirma Nicastro. Os gatos, convivendo com o homem há 5
000 anos, desenvolveram seus meios vocais para conseguir o que querem. “Os cães
utilizam outros meios, como a linguagem corporal, a expressão facial etc.
Existe uma pesquisa em curso sobre o modo com que os seres humanos entendem os
latidos, mas, na minha opinião, os resultados ainda são inconclusivos”, diz o
pesquisador. Nicastro, porém, não está afirmando que os gatos falam. Quando
miam, estão manipulando o dono para obter o que desejam. Não é nada lisonjeiro,
mas é algo que você precisa saber: nós também somos animais treinados.
Nicastro acredita que o miado teve um papel central na evolução dos
gatos. Ele esteve em um zoológico da África do Sul gravando os sons de um Felis
silvestris lybica, o gato selvagem que é tido como ancestral do Felis catus aí
no seu colo. A vocalização do gato selvagem não se revelou muito expressiva: só
sugeria irritação. Os primeiros gatos a serem adotados pelo homem teriam se
destacado, segundo Nicastro, por emissões vocais agradáveis. Os gatos mais
hábeis na manipulação vocal do ser humano teriam progressivamente cruzado entre
si, gerando ninhadas de gatinhos cada vez mais espertos no uso do gogó.
Mesmo sem a intervenção consciente e direta do ser humano, o resultado
seria similar àquele processo que, nos termos da teoria da evolução de Darwin,
é conhecido como seleção artificial – a ingerência do ser humano sobre a
reprodução de determinada espécie, para obter espécimes melhorados (é o que
acontece, por exemplo, quando um criador de gado busca um reprodutor premiado
para cruzar com sua vaca mais gorda).
Há controvérsias. O especialista em comportamento animal John
Bradshaw, da Universidade de Southampton, Inglaterra, afirma que o uso dos
miados para manipular os donos é resultado de aprendizagem individual e não da
evolução. Diferentes gatos usariam diferentes tipos de miado para obter a mesma
coisa. Nicastro, porém, não está pronto a entregar os pontos: “Traçar uma
distinção clara entre aprendizagem e evolução é um erro. A evolução influi
sobre a competência ou a rapidez com que uma espécie aprende a produzir
vocalizações apropriadas”.
Talvez um dia a ciência dê a palavra final sobre a importância da
evolução no miado (ou do miado na evolução). Mas não estará dando termo ao
mistério que cerca o gato. Supõe-se que ele foi domesticado alguns milhares de
anos depois do cão. Sua convivência com o homem tem sido irregular, acidentada,
com períodos de deificação e perseguição. No antigo Egito, o gato foi
literalmente a salvação da lavoura. Domesticado para controlar os roedores na
cultura de grão ao longo do rio Nilo, acabou merecendo um lugar no panteão dos
deuses. A deusa Bastet, que protege o deus-sol Rá de uma serpente, é uma gata.
Uma lenda muçulmana conta que, certo dia, a gata de Maomé estava
dormindo sobre o manto do dono quando ele foi chamado para uma batalha. Maomé
não cogitou acordá-la: preferiu cortar o manto com a espada. As crendices
cristãs não foram tão simpáticas com o gato. Na Idade Média, ele foi caçado em
toda a Europa por sua suposta associação com feiticeiras – o que contribuiu
para que a peste, transmitida pela pulga dos ratos, fizesse sua colheita mortal
entre os assustados cristãos.
O gato seria reabilitado nos séculos seguintes, mas, ainda hoje,
subsistem algumas superstições de provável origem medieval (gato preto dá azar
etc.). Na literatura, esse singelo animal doméstico muitas vezes parece ter um
pé no mundo real e outro no além – o exemplo mais inquietante será O Gato
Preto, do americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Mesmo o sorridente Gato de
Cheshire, criação do inglês Lewis Carroll (1832-1898) em Alice no País das
Maravilhas, tem qualquer coisa de bizarro em sua invisibilidade parcial. A
Rainha de Copas manda que o gato seja decapitado, mas seus guardas são
incapazes de cumprir a ordem. Como podem cortar a cabeça de um bicho do qual só
se enxerga o sorriso? É uma bela representação da nossa relação com os
bichanos. Independentes e orgulhosos, eles não se submetem a nossos caprichos
autoritários.
Os poetas têm uma predileção particular pelo gato. O francês Charles
Baudelaire (1821-1867) dedicou-lhe alguns poemas célebres de As Flores do Mal.
O americano naturalizado britânico T.S. Eliot (1888-1965) foi mais longe e
dedicou um livro inteiro aos felinos. No Brasil, poetas contemporâneos como
Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Nelson Ascher têm dado seguimento à tradição,
tomando o gato como tema de seus versos.
A imagem dos felinos na cultura pop não é unívoca. Temos o simpático e
psicodélico Felix, o gordo e cínico Garfield, e vários gatos atrapalhados e
famintos, sempre frustrados na perseguição da sua caça – os mais famosos são
Frajola e Tom. A violência implícita de desenhos como Tom e Jerry foi levada a
extremos sangrentos na genial paródia Comichão e Coçadinha, que figura em
alguns episódios de Os Simpsons. E não podemos esquecer os luxuriosos gatos de
Striptiras, quadrinhos do brasileiro Laerte.
Enquanto escreve essa matéria, o repórter está sob a vigilância das
pupilas oblongas do seu gato Sig, empoleirado sobre uma estante de livros. O
melhor lugar para ter um gato, de qualquer modo, não é sobre os livros, mas no
colo – bem aí onde ele se acomodou quando você, leitor, estava ainda no
primeiro parágrafo. Bash Dibra usa a palavra “beleza” para descrever nossa
comunicação com os gatos. O autor de CatSpeak não está exagerando. A ciência
está apenas começando a entender essa curiosa comunicação entre espécies
diferentes. Mas quem tem um gato já a conhece muito bem.
Sete mitos sobre os gatos
1. Gatos têm sete vidas
A lenda deve ter surgido por causa das habilidades especiais dos
felinos. Ágil e elástico, o gato não é uma presa fácil. Tem um grande senso de
equilíbrio e sabe girar o corpo no ar para cair quase sempre sobre as quatro
patas. Mas não se engane: uma queda da janela do seu apartamento pode ser
fatal.
2. Gatos não precisam de
cuidados
O gato é mais independente que o cachorro. Mas, como todo animal
doméstico, precisa de alimentação regular, instalações limpas, visitas ao
veterinário – e muito carinho.
3. Gatos são cruéis
Gatos conseguem girar as patas dianteiras de modo que a parte de baixo
fique voltada para dentro. Eles utilizam essa habilidade para “brincar” com sua
caça, jogando o infeliz ratinho de uma pata para a outra. Parece sadismo, mas é
só um comportamento instintivo.
4. Gatos não aprendem nada
Com paciência, carinho e alguma técnica, pode-se ensinar um gato a
atender quando chamado pelo nome. O bichano também é capaz de aprender truques
simples.
5. Gatos têm asma
Seu bichano pode sofrer de asma ou bronquite, mas essas doenças não
são comuns a todos os gatos. Ocorre que quem não está acostumado com o ronronar
característico do felino doméstico às vezes imagina que ele tem problemas
respiratórios. Há também quem pensa que o gato provoca asma. Crendice sem
fundamento. Pessoas asmáticas, no entanto, podem ter crises alérgicas em
ambientes compartilhados com gatos. A substância que detona essas crises está
na saliva do bichano.
6. Gatos gostam da casa, não do
dono
Calúnia! Gatos são animais extremamente afetivos e adoram seus donos.
Há inclusive casos, embora mais raros do que entre os cachorros, de gatos que
sofrem de ansiedade da separação: ficam angustiados quando o dono sai e se põem
a destruir a casa.
7. Cães e gatos são inimigos
Um lulu criado sem a companhia de um bichano talvez ataque o gato
malandro que entrar em seu território. Mas não é uma implicância particular: a
mesma agressividade seria demonstrada diante de um gambá, por exemplo.
Cachorros não são predadores naturais dos gatos. Criados juntos, eles aprendem
a conviver socialmente.
Com os cachorros, você manda. Com os gatos, é preciso pedir.
Fonte: Superinteressante.
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