Um clique e anos de fotografias, marcas de uma história de amor, desaparecem sem deixar vestígios. Dois toques e todos os números dela são desintegrados para sempre do telefone celular. Três teclas pressionadas e o Facebook altera o estatuto de uma relação, adicionalmente evacuando todos os contatos, a partir de então, indesejáveis. Quatro cliques e os e-mails dele vão para o cemitério infinito, sem lugar e sem rastro. Aquele, cujo nome não deve mais ser pronunciado, foi devidamente excluído de sua vida. Você está pronto para começar de novo. A verdadeira relação “líquida” deve corresponder ao que alguns analistas de consumo chamam de geração “teflon”, ou seja, “feita para que nada grude”. Tida como inodora, insípida e translúcida, esta forma de vida inspira duas dificuldades às quais os psicanalistas têm dedicado vasto esforço interpretativo: a separação e o compromisso.
Boa parte da literatura sobre luto e perda trata também, indiretamente, do difícil trabalho de recomeçar. Certos clínicos argumentam que um grande amor só acaba quando conseguimos iniciar outro. De fato, mesmo sozinhos nós continuamos amando. Cedo ou tarde a série dos amantes começa a dar os braços uns aos outros, como em um anel de benzeno que se fecha sobre si mesmo. Reconstruímos histórias imediatas ou antigas, reforçamos os laços colaterais de amizade, reinvestimos ligações primárias, criamos amores possíveis como na literatura e no cinema. Reinventamos amores impossíveis com nossa memória e fantasia. Freud dizia que a neurose ataca nossa capacidade de amar, substituindo-a pela fuga da realidade, quando o objeto se esvai, ou pela fuga para a realidade, quando é o “aparelho de amar” que se vê danificado.
Na década de 90 cardiologistas japoneses descreveram a síndrome do coração partido (takotsubo), similar a um ataque cardíaco, com testagem positiva para enzimas e alteração do funcionamento do ventrículo esquerdo – mas sem obstrução coronariana. Contudo, o quadro é reversível e não deixa sequelas, afetando caracteristicamente mulheres em pré-menopausa, que passaram por grandes perdas ou desilusões amorosas. A síndrome está associada ao estilo de vida moderno, que vem transferindo para o universo das relações amorosas os princípios de desempenho, avaliação de resultados, análise de risco e segurança jurídica que presidem as relações de trabalho e produção.
A descoberta faz lembrar um experimento clássico no qual dois ratos nadam em um tanque de água. O primeiro é deixado livremente até morrer exausto após duas ou três horas. O segundo é retirado da água um pouco antes do momento crítico e recolocado na mesma situação, após um descanso. O animal que passou pela experiência de ter sido salvo “no último instante” parece aprender algo muito poderoso, pois se torna capaz de nadar por um tempo dez vezes maior do que o outro. O exame do coração do primeiro rato mostra que ele parou em bradicardia (diminuição da frequência cardíaca), ou seja, lentamente ele foi desistindo de funcionar, deixando-se derrotar pela tarefa “sem sentido” de nadar sem saber aonde aquilo ia dar. Já o segundo rato lutou até explodir.
Também na clínica algumas separações que não terminam nunca, talvez não sejam casos de dificuldade em aceitar a perda, mas de recusa a começar de novo. Aquilo que é sentido como insubstituível no amor que agora se foi, talvez seja o correlato de uma boa experiência anterior de “salvamento no último segundo”. A permanência irresistível e insidiosa em algo que nos possui, com toda a sua sujeira, turvação e amargura, talvez seja uma espécie de retorno do que a vida líquida recalca, uma vingança do desejo de permanecer para sempre, sem ter de começar de novo. A síndrome do coração partido ataca na primavera, a estação dos começos. Os ratos que começam de novo não conseguem mais reconhecer a hora de parar. Na vida em formato de videogame aprendemos muito sobre como deletar pessoas e apagar e-mails, mas pouco sobre a arte de desistir, de se despedir e guardar as fotos de recordação, com carinho e gratidão, depois de ter feito tudo o que é possível.
Fonte: Mente, cérebro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário