Pense na pior lembrança da sua vida. Pode ser aquela vez em que você
foi assaltado. O dia em que foi demitido - ou o amor da sua vida te largou.
Todo mundo tem memórias ruins. Mas e se existisse um remédio capaz de
apagá-las? Sim, ele existe. Você tomaria?
Todo mundo coleciona algumas lembranças ruins ao longo da vida. Isso é
inevitável. Mas, no que depender de pesquisadores de várias partes do mundo,
vai deixar de ser. Eles estão trabalhando num projeto incrivelmente ambicioso:
a criação de uma droga que apague memórias ruins.
Isso sempre foi considerado impossível pela ciência. Mas o cenário
começou a mudar no final da década de 1990, graças ao neurocientista egípcio
naturalizado americano Karim Nader. Como os demais cientistas da época, Nader
sabia que as nossas memórias são apenas relações de afinidade entre os
neurônios. Quando você memoriza alguma coisa - o endereço da rua onde mora, por
exemplo -, o seu cérebro forma conexões entre os neurônios envolvidos com
aquela informação. Eles ficam mais sensíveis uns aos outros. Por isso, mais
tarde, quando você tenta se lembrar do endereço, a mesmíssima rede de neurônios
é ativada - e recupera a informação. É assim que a memória funciona.
Mas Nader percebeu que havia uma coisa a mais. Para que essa amizade entre
grupos de neurônios se formasse, o cérebro precisava sintetizar determinadas
proteínas. Ele teve a ideia de bloquear a ação dessas proteínas para ver o que
acontecia. Primeiro, passou várias semanas ensinando um grupo de ratinhos a
associar um determinado som com um pequeno e doloroso choque elétrico. Sempre
que o som era tocado, os camundongos levavam um choque (vida de cobaia não é
fácil). Com o tempo, eles aprenderam a lição - e ficavam com medo assim que
ouviam o som. Até que Nader injetou neles uma droga que inibia a síntese das
proteínas da memória. O resultado foi dramático, e deixou o cientista
boquiaberto. Os ratinhos pararam de reagir com medo quando o som era tocado.
"A memória de medo tinha partido. Os ratos tinham esquecido tudo",
diz Nader. O esquecimento era permanente, ou seja, persistiu mesmo depois que a
substância já havia sido eliminada do corpo dos animais.
Essa experiência mostrou, pela primeira vez, que era possível apagar
memórias. Isso acontece porque, a cada vez que tentamos acessar uma lembrança,
ela passa por um período de instabilidade, num processo chamado de
reconsolidação. Ele tem três etapas. Primeira: a informação sai do banco de
dados do cérebro. Segunda: ela chega à sua consciência e é acessada. Terceira:
a informação é gravada novamente no banco de dados. Nader descobriu que, se
você bloquear uma determinada proteína, a terceira etapa simplesmente não
acontece - e a memória não é regravada. Ela some para sempre.
Nader foi além. Ele queria saber se era possível apagar apenas uma
memória específica, ou se o processo acabava deletando outras lembranças de
forma involuntária. Então fez mais um experimento. Primeiro, fez os ratinhos
memorizarem uma sequência de sons que precediam o choque. Depois, tocou apenas
um som daquela sequência antes de injetar a droga apagadora de memórias.
Resultado? Os ratinhos esqueceram apenas aquele som - todos os demais
continuaram gravados na memória, associados ao choque. Ou seja: não só é
possível apagar memórias, é possível fazer isso com precisão de frações de
segundo. Nader não sabia direito em qual proteína cerebral deveria mirar, e fez
testes com várias. Até que o neurologista Todd Sacktor, da Universidade
Columbia, encontrou o alvo. É a proteína PKMzeta, que está envolvida com a
passagem de sinais elétricos entre os neurônios. Se você bloquear a PKMzeta
enquanto o indivíduo está se lembrando de alguma coisa, você destruirá aquela
memória. Sacktor provou isso numa experiência em que ratos recebiam uma injeção
de lítio - que provoca náuseas - sempre que comiam algo doce. A intenção era
fazer com que as cobaias associassem o sabor com o enjoo. A estratégia
funcionou, e logo os animais passaram a rejeitar comida doce. Mas, com uma
simples injeção de um inibidor de PKMzeta, eles esqueceram aquilo e voltaram a
gostar de doces. Os cientistas dizem que é preciso fazer mais testes para
entender qual é o real efeito disso no cérebro - e saber quais são os possíveis
efeitos colaterais, se existirem. Se usada de forma descontrolada, a técnica
poderia levar à destruição de memórias saudáveis. "Os efeitos da inibição
da PKMzeta parecem ser mais potentes. O desafio está em regular essa potência.
Nós estamos trabalhando nisso", afirma Sacktor.
Mexer na PKMzeta é dar um tiro de canhão. O ideal seria encontrar
proteínas ainda mais específicas, que permitissem apagar só as emoções
associadas a uma memória ruim - sem destruir a memória em si. Isso permitiria
que uma pessoa pudesse se libertar do sofrimento associado a uma memória, sem necessariamente
esquecer que aquilo aconteceu. Isso é importante porque preserva o aprendizado
que conquistamos ao viver situações ruins. Alguém que sofreu um acidente de
carro, por exemplo, ainda se lembraria do acidente - e, por isso, dirigiria com
responsabilidade. Só a angústia e o trauma ligados ao acidente seriam
deletados. "As pessoas poderiam se lembrar, sem ser sufocadas por aquela
memória traumática, podendo seguir adiante com suas vidas", acredita Karim
Nader, hoje professor da McGill University, no Canadá. O método: você iria a um
consultório médico e, sob a supervisão de um terapeuta, relembraria um fato
desagradável. Ao mesmo tempo, receberia a injeção de uma droga inibidora de
proteínas. E, como que por mágica, aquela memória que sempre incomodou tanto
deixaria de ser um trauma.
Isso já parece incrível, mas existe uma corrente de pesquisadores
trabalhando em algo ainda mais impressionante (e assustador também). Em vez de
apagar as memórias, que tal modificá-las?
BRILHO ETERNO
Cientistas da McGill University e da Harvard Medical School
descobriram que o propranolol, um remédio usado para tratar pressão alta, tem
um efeito colateral estranho: é capaz de alterar memórias armazenadas no
cérebro. Isso acontece porque ele inibe a atividade de um neurotransmissor, a
norepinefrina. Os cientistas fizeram testes com pessoas que tinham passado por
alguma situação traumática. Elas receberam uma dose de propranolol e foram
convidadas a relembrar o fato. As reações mais intensas de medo e emoção
desapareceram, e esse efeito se manteve mesmo depois que os voluntários não
estavam mais sob efeito do remédio. Segundo os cientistas, isso acontece porque
ele interfere na reconsolidação da memória, que é alterada e perde sua carga
emocional negativa antes de ser regravada pelo cérebro.
Num documentário sobre o estudo produzido pela McGill University, uma
paciente chamada Louise conta que finalmente conseguiu superar um trauma de
infância graças ao propranolol. Estuprada por um médico quando tinha apenas 12
anos, ela sofreu durante toda a vida as sequelas psicológicas disso. "Eu
não conseguia nem trocar de roupa na frente do meu marido", relata. Graças
ao tratamento, Louise diz que as memórias recorrentes e pesadelos
desapareceram, bem como o medo de tirar a roupa.
No Brasil, também há pesquisas em torno de formas de promover o
enfraquecimento de memórias traumáticas por meio do uso de drogas específicas.
Uma delas, realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
investiga a ação do topiramato, um remédio atualmente usado para tratar
convulsões. O topiramato seria capaz de inibir a produção de um
neurotransmissor, o glutamato, que age no hipocampo - a região do cérebro que
coordena o processo de formação de memórias. Em situações de estresse, o nível
de glutamato ali aumenta. Isso poderia explicar, por exemplo, os pensamentos
repetitivos que podem acompanhar uma experiência traumática. "Nossa
hipótese é que, ao reduzir a liberação do glutamato, podemos inibir a
reverberação de uma memória traumática", explica Marcelo Feijó, professor
do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. No estudo, mais de 82% dos pacientes
tratados com a substância apresentaram melhora dos sintomas de estresse
pós-traumático.
O estresse pós-traumático é caracterizado por sintomas como ansiedade
e depressão e está relacionado à lembrança de algum evento traumático
envolvendo ameaça à vida ou à integridade, como assaltos, sequestros, estupros
ou acidentes graves. O problema afeta 6% da população mundial, 420 milhões de pessoas.
Um medicamento que fosse eficaz contra ele poderia melhorar a vida de muita
gente.
As substâncias capazes de apagar memórias ruins também poderiam ser
usadas para tratar dor crônica. Por razões que a ciência ainda não compreende
completamente, em alguns casos, mesmo depois que um ferimento físico já foi
curado, alguns nervos continuam transmitindo sinais de dor na região, como se o
corpo tivesse memorizado aquela dor. A técnica também poderia ser usada como um
tratamento para a dependência química. Isso porque o vício em drogas está
relacionado à memória - à associação entre o uso da droga e o efeito que ela
proporciona. Se a pessoa se esquecer do prazer que sente ao consumir a droga,
fica mais fácil largar o vício. Num estudo realizado com ratos viciados em
morfina, a inibição da proteína PKMzeta ajudou a curar a dependência dos
roedores.
Em suma: mexer com as memórias pode trazer consequências muito boas.
Mas também pode ser extremamente ruim. O Conselho de Bioética da Casa Branca já
se manifestou sobre o assunto, apontando várias situações em que o apagamento
ou a alteração de memórias pode ser uma coisa ruim, antiética ou imoral. Um
bandido poderia recorrer à técnica para se livrar da culpa por ter praticado um
crime, por exemplo. Governos poderiam preparar seus soldados para matar - ou
para voltar a matar - sem conflitos emocionais. "Corremos o risco de
falsificar nossa percepção e entendimento do mundo. Nos arriscamos a fazer com
que atos vergonhosos sejam considerados menos vergonhosos, ou menos terríveis,
do que realmente são", diz o relatório.
Para a psiquiatra, psicanalista e bioeticista carioca Marlene Braz, a
possibilidade de mudar ou apagar memórias poderia ter consequências até sobre o
sistema jurídico. "Haveria uma tensão entre o direito individual de uma
pessoa - que decidiu esquecer - e o direito da coletividade, já que, na
prática, isso significaria subtrair evidências de um processo, já que não
poderíamos contar com o testemunho daquela pessoa", diz ela. Délio Kipper,
professor de Bioética do curso de Medicina da PUC do Rio Grande do Sul, ainda
aponta outros conflitos nessa área. "A modificação de memórias poderia
induzir a mudanças nos testemunhos. É um caminho muito perigoso", diz.
Até quem teria todos os motivos para alterar a própria memória vê essa
possibilidade com desconfiança.
Fonte: Superinteressante.
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