quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sonhos de Darwin à psicanálise

As interpretações sobrenaturais dos sonhos perderam força a partir do século 19, quando a ciência começou a se ocupar mais atentamente da questão. Um dos primeiros indícios dessa transformação está no livro A Descendência do Homem, de Charles Darwin, publicado em 1871. Nessa obra, o autor do célebre A Origem das Espécies, de 1859, faz algumas observações sobre a nossa capacidade de sonhar e sugere que não estamos sozinhos no reino de Morfeu. “Cachorros, gatos, cavalos e provavelmente todos os animais superiores, até mesmo as aves, têm sonhos vívidos, o que é mostrado por seus movimentos e pelos sons que emitem. Por isso devemos admitir que eles têm algum poder de imaginação”, escreveu. Ele acertou na mosca – hoje os cientistas sabem que praticamente todos os mamíferos e aves têm a capacidade de sonhar.
Darwin foi contemporâneo de pesquisadores como a psicóloga americana Mary Calkins. No artigo Estatística dos Sonhos, publicado em 1893, ela apresenta um método usado até hoje: durante o sono, quando seus pacientes começavam a mover algumas partes do corpo, ela os acordava e pedia que relatassem o que estavam sonhando. Calkins descobriu, entre outras coisas, que a maioria dos sonhos acontecia na segunda metade do período de sono e que 89% dos relatos tinham relação direta com os eventos do dia anterior. Houve vários outros estudos sobre os sonhos na segunda metade do século 19, mas eles não fizeram muito sucesso. “Descobertas importantes como essa foram enterradas pelo impacto da psicanálise”, escreveram os neurologistas César Timo-Iaria – que morreu no ano passado – e Ângela do Valle, da USP, em artigo publicado em 2004 na revista Hypnos, da PUC-SP.
Depois de Freud, de fato, nada seria como antes. O criador da psicanálise inaugurou um novo campo do saber, distinto da medicina, ao publicar A Interpretação dos Sonhos, em 1900 – a data correta é 1899, mas ele pediu ao editor que alterasse o ano para simbolizar sua pesquisa como o marco de um novo século. Depois de elaborar sua teoria sobre o inconsciente, Freud apontou os sonhos como uma “via régia” ou “estrada real” para o conteúdo oculto em nossas mentes. À noite, depois de fechar os olhos, deixamos aflorar os desejos que reprimimos quando estamos acordados. Mas isso não acontece de forma direta – quem deseja cometer um crime, por exemplo, não adota necessariamente um comportamento ilegal no sonho.
Freud atribui ao sonho um caráter simbólico, formado a partir de dois mecanismos básicos: a condensação e o deslocamento, que servem para distorcer o desejo reprimido – ou recalque, como preferem os psicanalistas – e driblar a censura que nos impomos, no sono ou na vigília. A condensação é um processo de síntese (um sonho relatado em um parágrafo pode render muitas páginas de interpretação) e o deslocamento transfere a importância do tema em destaque para outro sem relevância (um marido infiel pode não sonhar com a amante, mas com as cortinas do quarto de hotel onde se encontram).
Nas décadas seguintes, a psicanálise foi debatida, modificada e ampliada por vários pesquisadores. Um deles foi Carl Gustav Jung, acolhido inicialmente por Freud como seu discípulo, mas que depois se afastou do mestre e criou sua própria teoria. Inclusive no que diz respeito ao sonhos. “Para Jung, o sonho é um mecanismo compensatório da psique, e a realização de desejos reprimidos é apenas um aspecto dessa compensação”, diz a psicóloga Marion Gallbach, da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Ela dá um exemplo para ilustrar o conceito: “Pessoas na meia-idade que insistem em cultivar a juventude tendem a sonhar com a morte ou com símbolos relacionados ao envelhecimento, como a descida de uma montanha”. Só assim elas caem na real e começam a perceber que a vida, um dia, vai acabar. Outro conceito difundido por Jung foi o de inconsciente coletivo, que contém representações compartilhadas por todos nós – os arquétipos. “O arquétipo materno, por exemplo, é uma predisposição inata para reconhecer a figura da mãe, mesmo quando nascemos e não sabemos o que é uma mãe”, diz Marion. E o que os arquétipos têm a ver com os sonhos? Para Jung, eles ajudam a explicar alguns fenômenos que, vistos de outro ângulo, podem ser considerados sobrenaturais. Um deles é a sincronicidade, ou a ocorrência de sonhos semelhantes em pessoas sem nenhum vínculo. Como já nascemos com várias imagens moldadas em nossas mentes, é razoável imaginar que muitas delas podem se expressar ao mesmo tempo em indivíduos diferentes.
A teoria psicanalítica teve o mérito de desvendar os mecanismos e funções do sonho para, a partir desse conhecimento, permitir o tratamento de distúrbios de comportamento, certo? Não, nem todos pensam assim. “Não acredito na psicanálise como técnica de terapia. Os sonhos revelam alguns conteúdos da vida do indivíduo, mas o fato de relatá-los não cura ninguém de nada”, diz Ângela do Valle, da USP. O psiquiatra Robert Stickgold, da Universidade Harvard, nos EUA, pega mais pesado: “A psicanálise parte de premissas injustificadas e equivocadas, como a de que os sonhos refletem desejos reprimidos. Não há nenhuma evidência real de que isso esteja correto”. Os defensores da psicanálise, é claro, discordam. Mas o fato é que, 14 anos após a morte de Freud, em 1939, os estudos da neurologia jogaram um balde de água fria na interpretação subjetiva dos sonhos.
Terror sob os lençóis
No meio da noite, acordamos sobressaltados, com o coração acelerado e suando frio. Como se não bastasse, demoramos a pegar no sono de novo. Muitas pessoas têm sonhos assustadores com menor ou maior freqüência. As estatísticas mostram que cerca de 50% dos adultos relatam pesadelos ocasionais e 6,9% a 8,1% têm pesadelos crônicos, que detonam o sono sem dar trégua. Outra curiosidade numérica: as mulheres têm dois a 4 pesadelos para cada um relatado pelos homens – mas ainda não há nenhuma explicação para essa diferença entre os sexos. O pesadelo tradicional, sem nenhuma relação direta com fatos do dia anterior, se encaixa na categoria dos distúrbios do sono. Mas há uma outra classe de pesadelos, os pós-traumáticos, que tem algumas nuances importantes. “O conteúdo, na maioria das vezes, é idêntico ao evento que gerou o trauma”, diz o psicólogo Júlio Peres, que desenvolve uma tese de doutorado sobre o tema. E esse tipo mais realista de pesadelo é tiro e queda: mais de 60% das pessoas que passam por algum tipo de experiência traumatizante, como assaltos e agressões físicas, acabam desenvolvendo o problema. Um jeito de liquidar com ele é abrir o jogo e tentar completar, acordado, as histórias que causam a aflição noturna. Esse método, conhecido como Terapia do Ensaio Imaginário, usa o recurso da narrativa para tirar a força das emoções e sensações que teimam em manter viva a chama de uma lembrança ruim. Ninguém esquece o trauma, mas com a terapia dá para tirá-lo de baixo do travesseiro e dormir sem pesadelos.

Fontes:
www.lucidity.com - Instituto da Lucidez, que difunde a causa dos sonhos lúcidos
Dreaming: An Introduction to the Science of Sleep - J. Allan Hobson, Oxford Univ. Press, 2004
Jung e a Interpretação dos Sonhos - James A. Hall, Cultrix, 1992
Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan - Marco Antônio C. Jorge, Jorge Zahar, 2005

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